Homilia da Missa exequial de D. António Francisco dos Santos
No coração de Cristo, o nosso Bom Pastor
Irmãos caríssimos
Surpreendido ainda pelo súbito falecimento do Senhor D. António Francisco dos Santos, Bispo do Porto, nosso irmão e amigo, correspondo à indicação que me foi feita para presidir a esta Santa Missa Exequial.
Com simplicidade e emoção o faço. Longos anos de amizade, a coincidência de idade e de percurso eclesial, tudo me aproximou do Senhor D. António Francisco, em muitos encontros institucionais e pessoais, projetos e desafios das nossas missões e tarefas. Sempre nele encontrei disponibilidade e competência, além da muita estima recíproca.
Num momento como este, são muitas as palavras possíveis, como aliás têm sido proferidas por grande número de pessoas da Igreja e da sociedade, não faltando o depoimento de altas figuras da vida nacional e local. Todas aliam sentimentos de admiração e já saudade pela grande figura pessoal, eclesial e social que entre nós viveu e verdadeiramente conviveu, pois grande e marcante era a sua capacidade de estar com os outros e, ainda mais, de estar para os outros.
Assim sendo, continuará connosco pelo que de si mesmo nos ofereceu e passou a integrar também. Se, em boa parte, somos o que os outros nos fazem ser, grande vantagem foi – e motivo de ação de graças agora – termos podido disfrutar da presença, da palavra, da grande generosidade do Senhor D. António Francisco. Os homens bons são a garantia do mundo, os bons pastores são a glória da Igreja.
Não precisei de procurar muito a alusão bíblica que melhor o identificasse, como pessoa, como cristão e como bispo. Logo se impôs a que o próprio Cristo escolheu para si, ao apresentar-se como Pastor – o Bom Pastor das ovelhas que somos.
Lembramos o passo evangélico, como acabámos de ouvir. No capítulo décimo do Evangelho de João, o Bom Pastor distingue-se pelo conhecimento que tem das ovelhas - de cada um dos seus, nome a nome, assim mesmo os conduzindo e defendendo. Jesus diz também, e sobretudo, que não apenas as conduz mas dá a própria vida pelas ovelhas.
É esta a novidade, pois não tinham faltado nos profetas e nos salmos preciosas referências a Deus como Pastor do seu povo. Mesmo os antigos reis e outros responsáveis o podiam e deviam ter sido, de algum modo. A imagem não era totalmente nova, mas a novidade estava ainda por cumprir de modo definitivo e sensível.
Também nós o esperamos de quem tenha responsabilidades na cidade dos homens e na Igreja dos crentes. Tocados como fomos e permanecemos pela tradição evangélica, há imagens de Cristo que se tornaram profundamente culturais, no sentido mais preenchido do termo. Creio mesmo ser essa a realidade que ainda nos pode definir coletivamente – e cheia de futuro, aliás.
Não é por acaso que, quando queremos significar a verdadeira ajuda, o serviço dos outros, usamos – mais ou menos conscientemente – os termos tão evangélicos de “bom samaritano” ou de verdadeiramente “próximo”. Não é por acaso que, quando se acolhe benevolamente quem regressa, falamos do “filho pródigo” e sobretudo do pai que o recebe. Não é por acaso que se classificam as grandes dedicações profissionais ou cívicas como “sacerdócio”, no sentido novo que o Cristianismo lhe deu.
Mas de todas as imagens que Jesus toma para o Pai ou para si sobressai como particularmente impressiva a do “Bom Pastor”. Numa sociedade agrária e pastoril, como ainda era a sua e fora por tantos séculos a dos seus, a imagem evocava imediatamente o cuidado por todos e cada um, a atenção especial aos mais fracos, o aconchego duma presença certa. Por isso se impôs nas primeiras comunidades e na antiga iconografia cristã. Como se continua a impor na nossa meditação e oração. Cristo é o rosto definitivo e próximo de Deus, como nosso Pastor, como Pastor de todos.
E no entanto, caríssimos irmãos, creio que a alusão nunca seria tão forte e distintiva se não tivesse encontrado pleno e quase excessivo cumprimento na pessoa de Cristo, que não apenas guardou as suas ovelhas mas por elas deu a própria vida. Esta nova maneira de ser pastor, esta absoluta maneira de ser connosco, de ser por nós e para nós, é que dá ao passo evangélico a força e a sugestão que tão salutarmente mantém.
Digamos ainda que, assim como Jesus Cristo deu à imagem do Bom Pastor a realidade mais concreta e convincente, assim a sua presença ressuscitada encontra o sinal e o sacramento em quem, pela participação no seu Espírito, lhe dê agora o rosto e o gesto.
É precisamente neste ponto que – sem extrapolações nem lugares comuns – podemos e devemos reencontrar a figura do Senhor D. António Francisco, com toda a justiça em relação ao que foi entre nós e muita ação de graças a Deus que no-lo deu como sacramento de Cristo Pastor – em Lamego, em Braga, em Aveiro, no Porto e em todos os lugares que a sua vida visitou.
Ser bispo, nas atuais circunstâncias, é um trabalho complexo e quase inabarcável para quem o exerce. Não se está acima de nada nem de ninguém, muito pelo contrário, mas sim no centro de tudo ou quase tudo, no que à igreja se refere e mesmo além da vida da Igreja. A pressão é grande, inclusive a mediática, e as estruturas intermédias quase se desfazem, pois sempre se espera que quem está no centro responda imediatamente seja ao que for, por mais inesperado ou casual que possa ser.
A mentalidade é de contraste, o dia-a-dia atropela-se e a solicitação é forte ou latente. Por outro lado, tratando-se de acompanhar e conjugar a vida eclesial, a avaliação e a decisão requerem especial cuidado. São sempre realidades anímicas, trata-se afinal de pessoas.
D. António Francisco dos Santos foi um grande pastor da Igreja. No sentido plenamente cristão de quem dá a vida pelas ovelhas. Assim a deu generosamente, quase sem descanso e nas circunstâncias que esbocei.
Lembro-me de quando veio falar comigo, hesitante em aceitar o cargo. Estava feliz e realizado em Aveiro e tinha receio de não ser capaz. Foi capaz e capacíssimo, precisamente no essencial, de ser um pastor próximo e amigo de todos e cada um dos seus. Não lhe faltaram dificuldades, mas nenhuma lhe endureceu o espírito nem o trato. Sábio e bondoso, assim permaneceu e assim nos fica, como memória e como estímulo.
Fisicamente, o coração pode parar. Espiritualmente, isto é, realmente, continua connosco no coração de Deus. No coração de Cristo, o nosso Bom Pastor.
Muito obrigado, caríssimo irmão e amigo!
Sé do Porto, 13 de setembro de 2017
+ Manuel Clemente